terça-feira, 22 de março de 2011

Pulp

-(…). Eu sou boa.
-Em quê? Sabe estenografia?
-Não, mas faço coisas pequenas ficarem grandes
-Como?
-Você sabe!
-Não, não sei.
-Imagine.
-Balões?
-Você é engraçado.
-Já me disseram.

O texto da contracapa de “Pulp”, na edição da L&PM, começa com a frase “Eis um Bukowski puro-sangue”. Puro-sangue, certo? Não. “Pulp” pode ser facilmente reconhecido como livro de Bukowski porque estão lá seu humor ácido, suas ótimas frases de efeito, os diálogos fortes, os palavrões, a bebida e as mulheres, mas é provavelmente o romance mais atípico do velho Buk. Ao contrário de todos os seus outros romances, “Pulp” não é descaradamente autobiográfico, seu personagem central não é o alter-ego do autor, Henry Chinaski, mas o detetive Nick Belane. Belane tem 55 anos, está acima do peso, é durão, bebe, aposta nos cavalos e está sozinho, depois de três divórcios. Ok, ele é também uma das facetas de Bukowski, mas sua arma não é a máquina de escrever e sim um 32. Ele é um advogado de segunda classe em Los Angeles com problemas para pagar o aluguel e que não é exatamente o melhor no seu ramo, mas tem estilo.

A história começa bem, com uma sensual “Dona Morte” encomendando um serviço surreal a Belane. Ela precisa encontrar Celine, o escritor francês maldito que influenciou toda uma geração de escritores marginais, em especial Bukowski, e morreu em 1961. “Celine está morto” tenta se convencer Belane, mas não adianta ele tentar colocar ordem no que vai acontecer em “Pulp”, cada vez mais seus casos vão ficando obscuros, incluindo alienígenas, uma deliciosa mulher que estaria traindo o marido e principalmente misterioso Pardal Vermelho – uma possível referência a editora de Buk, Black Sparrow, ou ao maior clássico dos livros de detetives modernos, o “Falcão Maltês”.

No entanto, o excesso de referências à subliteratura (a quem o autor dedica a obra) e a fantasia e filmes B, acaba tornando o meio do livro um pouco esquizofrênico, um excesso de sátira que impede que ele chegue ao nível dos melhores Bukowskis como “Misto Quente” ou “Fabulário Geral do Delírio Cotidiano”. É como o caso de Quentin Tarantino em “Kill Bill” ou “Grindhouse”. Tarantino também dedicou um filme (“Pulp Fiction”) ao gênero pulp – revistas feitas com papel de baixa qualidade (a “polpa”) a partir do início da década de 1920, que geralmente tratavam de ficção científica e fantasia. Seus dois primeiros filmes foram aclamados como obras-primas, mas apesar do sucesso de Kill Bill, há um excesso de referências ali que quase soterra o filme. Na ideia de homenagear um gênero menor, o autor acaba fazendo mais uma grande sopa de referências e piadas internas àquele gênero do que uma grande obra.

Bom, mas além de ser o livro mais “pretensioso artisticamente” de Buk, com bons momentos como o sonho maluco que Belane tem no capítulo 17, “Pulp” vale por ser o romance onde o autor se despede da vida. Por trás de todos os personagens fakies e diálogos divertidos, “Pulp” é um livro sobre a morte. Talvez por isso o autor tenha adotado a ficção desta vez. Ninguém pode contar o próprio fim sendo realista. Se em “Misto Quente” ele narra sua infância, em “Cartas na Rua” seu trabalho como carteiro e em “Hollywood” sua experiência como roteirista de cinema, aqui Bukowski nos fala sobre a velhice e o fim da vida (“Pulp” é o último romance dele e foi concluído alguns meses antes de sua morte em março de 1994.) Nisso, ele se assemelha ao livro póstumo, que conta com ilustrações de Crumb, “O Capitão saiu e os marinheiros tomaram conta do navio”, o mais filosófico de Bukowski. E é no final do livro que ele volta a crescer. O capítulo 39 é uma poderosa descrição de como o autor se sente em relação à vida. Começa com Belane entre suas duas clientes gostosas/misteriosas: “Ali estava eu, basicamente, sentado entre o Espaço e a Morte”. E depois “Porque eu não podia simplesmente ser um cara assistindo a um jogo de beisebol? (…) Por que eu não podia ser um galo num galinheiro, catando milho?” Buk nunca conseguiu ser um cara comum, “um galo no galinheiro”, sempre se sentiu um estrangeiro numa sociedade que não fazia o menor sentido pra ele. A vida funcionava como a relação entre Belane e os mendigos que lhe pediam dinheiro: “Às vezes eu dava e às vezes não”.

Como termina a contracapa citada no começo dessa resenha: “Tomara que a morte estivesse linda, gostosa e sexy – como está nesta história- quando encontrou o velho Buk poucos meses depois de ter posto o ponto final nesta pequena obra-prima”.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Ecce Homo - Nietzsche Bate forte, porém sem rodeios

Além de ter sido um gênio no sentido mais amplo do termo, Nietzsche (1844-1900) também foi um dos mais refinados humoristas de seu tempo, um sátiro do mesmo quilate de Voltaire. E não estou brincando com relação a isso, tão pouco menosprezando a fantástica obra nietzschiana ao enfatizar sua veia humorística, mas apenas ressaltando que esta a impressão que se tem logo ao ler as primeiras páginas de "Ecce Homo" e exemplifica plausivelmente uma das máximas gislescas de que nada é mais hilariante do que a mais pura verdade.

A extraordinária autobiografia nietzschiana é um antro da mais grandiosa e contundente ode a si mesmo. Com uma escrita apurada e cheia de deliciosas referências, ele mostra a quem ainda não se dignou a notar, o porquê de ser tão inteligente, o porquê de escrever livros tão bons, o porquê de ser tão sábio... E ainda nos leva em uma viagem pelos bastidores de sua impecável obra literofilosófica, comentando seus livros, com um humor acrimonioso atirado por uma metralhadora giratória. Nietzsche é sempre atual porque sempre esteve, enclichezadamente falando, muito à frente de seu tempo. Ele não conseguiu, em vida, nem um doze avos do reconhecimento de que era merecedor, e o que poderia ter sido um empecilho, parece ter sido a grande inspiração para que ele escrevesse este que foi o último suspiro antes do colapso mental que o atacou, a paralisia que o levaria à morte.

Logo no prólogo, ele já manda uma bala que atinge o alvo antes que este tenha tempo de dizer "Zaratustra", dizendo que "O desequilíbrio entre a grandeza de minha tarefa e a pequenez de meus contemporâneos ficou expresso no fato de que não me ouviram, nem sequer me viram." Referindo-se a seu projeto de "Transvaloração de Todos os Valores", que incluía "As Canções e Zaratustra" (publicado postumamente sob o titulo de "Ditirambos de Dioniso") "O Anticristo", "Ecce Homo" e mais um, que não chegou a ficar pronto, ele esclarece que esta seria a mais pesada exigência que jamais foi colocada à humanidade. Alguém ainda duvida? E o ritmo é constante, porém, nada monótono, sempre enfatizando a si mesmo como o grande pensador que fora e como o "ar das alturas", de sua obra, poderia ser prejudicial aos que não tinham sido talhados para respirá-lo. Entre um golpe e outro, ele demonstra sua gratidão a si mesmo e ao ano glorioso que teve (1888), em que trouxe à vida seu já citado projeto de transvaloração dos valores, "Crepúsculo dos Ídolos" e o próprio "Ecce Homo", suas tentativas de filosofar com o martelo. Noutra forma de se auto-elogiar e provar o porquê de não ser um décadent, fala de seu pai, "frágil, amável e mórbido, destinado à transitoriedade, uma lembrança bondosa da vida, e não a vida em si"; da mãe e da irmã, "quando eu procuro o mais profundo dos antagonismos a mim mesmo, a baixeza incalculável dos instintos, sempre encontro minha mãe e minha irmã"; e, especialmente, contra-ataca os alemães, seus alvos favoritos: "Sou estranho a tudo que é alemão, de modo que tão-só a proximidade de um alemão retarda a minha digestão ".Entre seus "iguais", ele coloca o casal Wagner, dizendo que "Cosima (mulher de Richard) é, de longe, a natureza mais nobre, a única mulher digna a receber o primeiro exemplar de Ecce Homo. E Richard, é o homem mais aparentado comigo... O resto é silêncio..." O tal do silêncio pode ser exemplificado pelo papel social da mulher (especialmente a do final do século XIX), que ele diz ter o páthos agressivo, ser vingativa, e por isso, fraca. Elogia Stendhal, que lhe "roubou" um dos seus melhores aforismos ateus ("Qual foi à maior objeção à existência feita até hoje? Deus"); Baudelaire, "que foi o primeiro a entender Delacroix e Wagner" e mais uns poucos sortudos.

Num dos motivos que explicam sua larga sabedoria e seu caráter benéfico por ser maligno, ele cita o método de desforra: mandar o mais rápido possível, uma atitude inteligente atrás de uma burrice, pois assim talvez a mesma ainda possa ser alcançada. "Basta que me façam algo de mau, que em pouco tempo encontro uma oportunidade de expressar meu agradecimento ao "malfeitor" ou de pedir algo a ele, o que pode ser mais cortês do que dar alguma coisa. "Ainda divaga, com muita coerência, sobre o tipo de recreação (“ ler me relaxa de minha própria seriedade”), a nutrição (pro diabo a culinária alemã!), o local e o clima (seco, de Paris, Atenas, Florença) corretos para extrair o melhor de si mesmo; critica o estilo de viver "sobre as nádegas", que alguns ostentam; os "wagnerianos et hoc genus omne, que acreditam honrar a Wagner pelo fato de se considerarem semelhantes a ele". E explica "que a gente se torne o que a gente é pressupõe que a gente não saiba o que a gente é. Até mesmo as decisões erradas têm seu valor e seu sentido peculiar". Sobre a solidão, além do que foi feito no majestoso "Assim Falou Zaratustra", ele sintetiza tudo numa única frase: "minha humanidade não consiste em sentir junto com a pessoa como ela é, mas sim em suportar o fato de senti-la". E completa, primorosamente: "Sofrer por causa da solidão também é uma objeção ― eu sempre sofri tão-só por causa da 'multidão'". Amém.