sábado, 16 de maio de 2009

A Revolução Beatnik


A partir dos anos 50, a escrita ganhou som, fúria e movimento nas mãos ligeiras de jovens escritores que decidiram encarar o conservadorismo moral vigente nos EUA e instaurar uma nova maneira de enfrentar o mundo. Essa geração, que passaria a ser reconhecida como “beat”, protagonizou uma reformulação em termos de comportamento, desenvolveu a expansão da consciência por meio de experiências alucinógenas e ganhou a admiração de jovens insatisfeitos da classe média.

A influência extrapolou o campo literário e estendeu-se por gerações. As canções de Bob Dylan e Jim Morrison ou os filmes de Wim Wenders e Jim Jarmusch são exemplos declarados ou dissimulados de seguidores do espírito beat. Muito do que se viu nos anos 60: a manifestação dos hippies, a experiência com drogas, os discursos fervorosos sobre sexualidade, os manifestos antimilitares, associa-se ao universo de interesse dos autores beats.

Três escritores e três livros formam o panteão da geração. “Pé na Estrada” (“On The Road”), de Jack Kerouac, “Almoço Nu” (“Naked Lunch”), de William Burroughs e o poema “Uivo” (“Howl”), de Allen Ginsberg. Em comum, as obras têm um vigor narrativo muito intenso, um fluxo de pensamento desordenado, por vezes caótico, e uma “linguagem de rua”, cheia de gírias e palavrões. Sobre o estilo verborrágico de Kerouac, o escritor e tradutor Eduardo Bueno diz:

“Kerouac empenhou-se em forjar uma nova prosódia, capturando a sonoridade das ruas, das planícies e das estradas dos EUA, disposto a libertar a literatura norte-americana de determinadas amarras acadêmicas e de um certo servilismo a fórmulas européias (ou europeizantes). Ao fazê-lo, introduziu o som na prosa -antes e melhor do que qualquer outro romancista de sua geração”.

Além das particularidades narrativas, os integrantes do movimento faziam questão de levar uma vida condizente com o ritmo de seus relatos. A distribuidora Magnus Opus oferece uma boa oportunidade para conferir esse aspecto biográfico nos documentários recém-lançados “Kerouac - O Rei dos Beats”, dirigido por John Antonelli em 1984, e “William Burroughs, Poeta do Submundo” (1991), do diretor Klaus Maeck.

O primeiro é um registro da vida do escritor norte-americano Jack Kerouac, desde sua infância em Lowell até a sua morte, noticiada em 1969 por um telejornal da época. A seqüência dos fatos é dramatizada pelo ator Jack Coulter, no papel do escritor, e intercalada pela leitura de trechos de seus livros. Muito do que aparece na tela serve menos para desmistificá-lo e mais para manter certo glamour em suas atitudes.

Vários depoimentos de amigos íntimos (Lawrence Ferlinghetti, Armand Morissette) e amantes de Kerouac são combinados com declarações do próprio escritor numa entrevista rara de 1968, no programa televisivo de William Buckley. O amigo e agente literário Allen Ginsberg conta no documentário que, por ocasião desse encontro, Kerouac, acatando sugestão de Burroughs, resolveu alugar um quarto em Nova York, onde ficaram também sua irmã e o cunhado. Ginsberg resolveu acompanhá-lo até o estúdio onde seria gravada a entrevista. Momentos antes, Kerouac avistou uma bebida encostada no canto do camarim. Quando foi o momento de aparecer no palco, Ginsberg conta que o amigo “foi para o programa embriagado, todo caipira e com barriga de cerveja”. A fala pastosa e o rosto inchado de Kerouac revelam o estado alterado em que concedera a entrevista.

O outro documentário, dedicado a William Burroughs, tem formato parecido, mas não prioriza tanto a cronologia de sua vida. Expõe mais suas idéias e suas experiências literárias. Exibe o próprio autor realizando leitura de suas obras no teatro Filmkunst, em 1986, além de trechos de uma entrevista ao escritor Jürgen Ploog. Ao ser questionado sobre a desordem narrativa estabelecida em seus livros, Burroughs afirma que “é muito difícil para qualquer um parar a fluência das palavras”.

Ambos os filmes servem como ponto de partida para se mergulhar no universo intrincado e despudorado dos escritores beats: o uso de drogas lícitas e ilícitas, o consumo desenfreado de bebidas alcoólicas, as experiências sexuais, o comportamento incontido dos personagens, a convivência à margem da sociedade e uma necessidade voluptuosa de registrar no papel sua própria devassidão.

Kerouac e a enxurrada de palavras

Jack Kerouac escreveu sua obra-prima “On The Road”, livro que seria consagrado mais tarde como a “bíblia hippie”, em apenas três semanas. O fôlego narrativo alucinante do escritor impressionou bastante seus editores. Jack usava uma máquina de escrever e um rolo de papel de telex para não ter de trocar de folha a todo o momento. Redigia de forma ininterrupta, invariavelmente sem a preocupação de cadenciar o fluxo de palavras com pontuação e parágrafos.

O material bruto que chegou às mãos de Malcom Cowley, da editora Viking Press, em 1957, deu trabalho. Os rolos quilométricos de texto tiveram de ser revisados, foram inseridos pontos e vírgulas e praticamente 120 páginas do original foram eliminadas. O estilo-avalanche de Jack tinha ainda um elemento intensificador. Ele trabalhou em cima do livro sob o efeito de benzedrina, uma droga estimulante.

“Começamos a experimentar benzedrina e anestésicos. Eu pensava que não poderia escrever porque minha mente ficava confusa, mas Jack sentia que podia escrever romances usando isso. E acho que alguns dos seus romances do início dos anos 50 foram escritos sob efeito desses e outros tóxicos. Jack praticamente se sentava e datilografava por várias semanas, fazia correções, escrevia continuamente 5, 6 ou 7 horas por dia, às vezes até o dia inteiro”, diz o amigo Allen Ginsberg.

Jack Kerouac era de origem franco-canadense. Nasceu no dia 12 de março de 1922, em Lowell, no estado americano de Massachusetts. Na infância, freqüentou um colégio jesuíta e ajudou o pai na fábrica de impressão. Um de seus traumas mais trágicos, que voltaria relatado em seus romances, foi à morte de seu irmão Gerard quando ele tinha apenas nove anos.

Devido às dificuldades econômicas por que passava a família, Jack resolveu fazer parte do time de futebol americano do colégio para tentar uma bolsa de estudo na faculdade. E conseguiu. Mudou-se com os pais para Nova York e iniciou um curso na Universidade de Columbia. Antes de pegar o diploma, abandonou os estudos e resolveu alistar-se na Marinha.

Foi a época em que Jack conheceu os grandes amigos que formariam, alguns anos mais tarde, o pelotão de frente da geração beat. Para desgosto da mãe, perambulava pelas ruas de Nova York com o poeta Allen Ginsberg, conheceu também William Burroughs, chamado de Bill pelos camaradas, além de seu maior companheiro de viagens, Neal Cassady, o “Cowboy”.

A relação do escritor com Neal foi determinante para despertar em Jack sua vontade reprimida de botar o pé na estrada e desfrutar de uma liberdade ainda não experimentada. Os dois viajaram por sete anos percorrendo a rota 66, que cruza os EUA na direção leste-oeste, com descidas freqüentes ao México. Saíram de Nova York e cruzaram o país em direção a São Francisco. Dessa jornada saiu o livro “On the Road”, cujo protagonista é Dean Moriarty, o nome criado por Jack para representar o amigo Neal.

“Jack sempre foi muito tímido, ainda que parecesse durão, era doce, sensível, passional. Neal era mais espontâneo, machão sem fazer esforço, mas também se interessava muito pelas palavras. Ele esperava Jack ensiná-lo a ser do seu jeito. Eles eram opostos e muita gente pensava que se pareciam. Neal era rude, Jack era mais introvertido e gostaria de ter a mesma iniciativa com as mulheres. Ele gostava de ver Neal fazer isso”, diz a novelista e mulher de Neal, Carolyn Cassady.

O sucesso e o prestígio conquistados após a publicação de “On the Road”, em 1957, deixaram Jack atormentado. Apesar de eventuais críticas positivas que realçavam o caráter inovador da obra, muitos criticos o tacharam de subliterato e imoral. A primeira resenha escrita por Gilbert Millstein no jornal The New York Times foi satisfatória. Ele recorda no documentário “O Rei dos Beats” qual foi sua sensação ao ler o livro.

“Eu li o livro e fiquei simplesmente estupefato. Eu disse ali que acreditava naquilo como a expressão perfeita de uma geração, assim como Hemingway em ‘The Sun Also Rises’ também foi uma expressão da sua geração naquela época”. O efeito imediato da fama causou apreensão e relutância em Jack. Joyce Johnson, a jovem namorada com quem o escritor morava na época, relembra a reação dele diante da celebração instantânea. “Ele estava agitado e com medo. Ele também sentia que teria de viver para sua imagem pública, pois todos esperariam que ele fosse como Dean Moriarty ou Neal Cassady, mas ele era só Jack Kerouac. Era bastante tímido, preferia ficar num canto olhando, refletindo”.

Logo após a publicação, Jack trabalhou intensamente em outros projetos. “The Dharma Bums”, lançado em 1958, foi à tentativa do escritor de estabelecer afinidades com o budismo. É o relato de uma escalada com o amigo poeta Gary Snyder em busca de realizações espirituais.

Nesta mesma época, Jack resolveu se isolar do convívio humano. Subiu até o alto de uma colina e passou longo dia sozinho confinado em uma cabana sem eletricidade e sem vidros nas janelas. Tomava quase uma garrafa de bebida por dia e sofreu com alucinações e paranóias. A experiência foi registrada no livro “Big Sur”, de 1962. O problema do alcoolismo piorou com o tempo, e Jack foi morar com a mãe. O vigor deu lugar ao cansaço, e o escritor resignou-se a uma vida ordinária.

Em 21 de outubro de 1969, Jack Kerouac morreu de hemorragia, quando tinha 47 anos, no hospital em St. Petesburg, na Flórida. O amigo e agente literário Allen Ginsberg reverencia seu talento: “Eu não conheço outro escritor que teve influência tão produtiva quanto Kerouac, que abriu o coração como escritor para contar o máximo dos segredos da sua própria mente”.

BURROUGHS E A CONSCIÊNCIA EM EXPANSÃO

William Seward Burroughs mergulhou fundo nas experiências com narcóticos e tirou de lá uma percepção inusitada do mundo com a qual abasteceu suas histórias sobre doentes terminais, homossexuais, traficantes e criaturas asquerosas. Pagou caro por isso. Teve passagem por clínicas de reabilitação e sobreviveu sob severos tratamentos.

De família tradicional, Bill, como era conhecido pelos amigos, nasceu em 1914, na cidade de Saint Louis, no estado americano de Missouri. Foi neto de um famoso inventor de máquinas de calcular. Formou-se em artes na Universidade de Harvard, em 1936. Durante este período, o escritor aproveitou para circular pelos clubes e becos underground de Nova York. Após o término da faculdade, Bill viajou para a Europa às custas de mesadas concedidas pelos pais.

Chegou a estudar medicina em Veneza, na Itália. De passagem por Viena, Burroughs conheceu Ilse Klapper, uma jovem judia, com quem o escritor se casou, e viajou de volta para os EUA. Em 1951, um acontecimento trágico envolvendo sua segunda esposa afetou-o diretamente e despertou-lhe o desejo de escrever. Durante uma estadia no México, Bill pediu para que Joan Vollmer, sua mulher, equilibrasse um copo sobre a cabeça. Depois pegou um revólver e ajustou a mira. O disparo que seria para estilhaçar o copo acertou em cheio o rosto de Joan.

Bill passou 13 dias preso e foi libertado sob a alegação de que o caso fora acidental. Ainda no México, Burroughs começou a escrever seu primeiro livro, “Junky”, e deixou uma série de manuscritos incompletos referentes a um estudo sobre homossexualidade. Em 1953, fez uma excursão de seis meses pela América do Sul para estudar uma substância vegetal alucinógena chamada ayahuasca, usada em cultos de povos nativos. Mais tarde escreveria o livro “Yage” sobre essa experiência.

Sua principal obra, “Almoço Nu”, foi construída de forma desordenada durante nove anos de viagem do autor por diversos continentes. Na nota de introdução à edição mais recente da obra, os editores Barry Miles e James Grauerholz comentam: “Burroughs debatia-se de forma inclemente com a ‘forma’ de seu romance, mas como a cada dia escrevia mais e tomava novos rumos, acabou perdendo a capacidade de gerenciar o caos de páginas datilografadas e escritas à mão que se acumulavam em seu quarto com jardim no Hotel Muniriya, de Tânger”.

Na maior parte do tempo, Burroughs confinou-se num quartinho em Tânger, no Marrocos, a fim de concentrar esforços para botar um ponto final na sua obra. Diariamente, usava drogas sintéticas injetáveis e substâncias derivadas do ópio. Seu grau de dependência e consumo aumentou até chegar no limite de debilitação do corpo em 1956, quando o escritor viajou a Londres em busca de ajuda. Na capital inglesa, o escritor ficou internado sob medicação de apomorfina, receitada pelo doutor John Dent, numa tentativa de reabilitá-lo. O próprio autor faz um depoimento acerca do tratamento, em um dos apêndices que acompanham a versão definitiva de “Almoço Nu”. “Encontrei essa vacina quando estava no fundo do poço da ‘junk’ (termo genérico para designar o ópio e seus derivados). Vivia em um quarto no bairro Nativo de Tânger. Não tomava banho havia um ano nem trocava ou tirava as roupas para nada a não ser para enfiar uma agulha na carne fibrosa, desbotada e rígida da dependência terminal, coisa que fazia de hora em hora”, escreveu.

Após o tratamento com apomorfina, Burroughs deixou a clínica e passou dois anos afastados das drogas. Ajudado por Allen Ginsberg, Alan Ansen e Peter Orlovsky - reunidos em Tânger- houve uma cooperação de todos para revisar o numeroso material bruto e organizar os capítulos. O teor das páginas escritas variava desde experiências sexuais e orgias, extensos estudos sobre tipos de narcóticos, revelações sobre o tráfico de entorpecentes e relatos de sonhos repletos de criaturas fantásticas.

Tudo sem depender exclusivamente de uma linha de raciocínio lógica, algo elaborado como uma emancipação livre do fluxo de consciência. Após ser rejeitado pelo editor Lawrence Ferlinghetti, da City Lights Books, editora de San Francisco especializada em publicações independentes, “Almoço Nu” foi publicado pela editora francesa Olympia Press, em 1959, e saiu nas livrarias dos EUA dois anos depois, numa reedição da Grove Press.

Burroughs tornou-se rapidamente um símbolo da contracultura e continuou espalhando suas idéias libertárias. Seus livros seguintes –com destaque para “Nova Express” (1963)- adotaram uma fórmula testada no seu romance anterior: o método “cut-up”. Uma narrativa que consiste em justapor palavras e imagens de outros contextos (muitas vezes apropriando-se de textos de outros autores) a fim de criar uma nova combinação informativa.

Até a sua morte, em 1997, na cidade de Kansas, Burroughs colaborou de forma atuante com diversos artistas. Fez uma ponta como um clérigo viciado em drogas no filme “Drugstore Cowboy” (1989), do diretor americano Gus Van Sant, auxiliou o cineasta canadense David Cronenberg na adaptação para as telas do seu romance “Almoço Nu” e chegou a fazer uma participação especial na gravação de uma canção do grupo grunge Nirvana.

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